Associação das Emissoras de Radiodifusão do Paraná

SÉRIE FÓRUM MUNDIAL DA ÁGUA – “As águas subterrâneas devem deixar de ser tratadas como invisíveis no Brasil”, alerta Ricardo Hirata

Por Comunicação. Publicado em 05/04/2017 às 20:15. Atualizado em 18/07/2018 às 18:53.

O Brasil vive realidades distintas em relação ao uso de suas águas subterrâneas. Enquanto que em Recife, por exemplo, a perfuração de poços artesianos – a maioria deles clandestinos – ocorre de fora massiva, no Sudeste a crise hídrica poderia ter sido amenizada com a utilização mais inteligente do recurso de acordo com alguns especialistas.
Em nossa série especial, o vice-diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas da USP, Ricardo Hirata, comenta sobre a importância de políticas públicas que ajudem a regular as águas subterrâneas no Brasil. Ele compara o recurso como uma grande “poupança” de água para as futuras gerações.

Web Rádio Água – As águas subterrâneas têm sido mau utilizadas no Brasil?
Ricardo Hirata – São vários os problemas ou limitações associados à questão da água subterrânea. Uma que ela não é somente invisível aos olhos das pessoas, mas igualmente invisível como para as estatísticas oficiais de governo. Vou citar dois exemplos. Na cidade de São Paulo, o abastecimento público (aquele que a concessionária abastece a população), é feito 99% vinda de fontes superficiais. Restando apenas 1% para as águas subterrâneas, que são alguns poços em bairros isoladas da região metropolitana. Quando você olha com uma ‘lupa’ realmente o que está acontecendo, você vê que existem 12 mil poços privados extraindo água subterrânea, que somam 10 metros cúbicos de água por segundo. Ou seja, se você realmente vê como que o sistema de abastecimento sobrevive aqui na região metropolitana de São Paulo não é 1% e sim estamos falando que 15% do abastecimento público é feito com água subterrânea. Claro que são sistemas privados pulverizados dentro de uma grande São Paulo. Mas a atenção pública deveria ser que 15% do abastecimento público – e durante a recente crise, esse abastecimento representou 23% do abastecimento total – nós vemos que a água subterrânea deve fazer parte de uma política real em termos de segurança hídrica das grandes cidades.
Um outro exemplo é a cidade de Recife. Estamos falando uma cidade de 1,5 milhão (de habitantes), que utiliza 6 metros cúbicos de água por segundo por fontes públicas, das quais apenas 6% são abastecidas por água subterrânea. Quando vemos efetivamente, através dos 6 a 8 mil poços que existem privados igualmente distribuídos pela cidade de Recife, a gente vê que o abastecimento público aditivamente, ou seja, as pessoas utilizam em suas casas 20% das águas subterrâneas. Em Recife, não existe uma política específica para considerar as águas subterrâneas na questão da segurança hídrica. Esse é um problema e raiz para vários outros. Se as águas subterrâneas não são reconhecidas na sua importância para a população e as cidades, mesmo considerando que 83% da população brasileira abre a torneira e tem água subterrânea (isso segundo estatísticas oficiais. Deve ser muito mais), mesmo assim ela não tem está na agenda política dos estados, porque são os estados que regulamentam e legislam sobre as águas subterrâneas.

WRA – E quais são os reflexos dessa situação?
RH – Quando vemos que 70% dos poços existentes no País são ilegais, ou seja, a pessoa não pediu a licença de utilização ou outorga de uso da água. Nós temos então que a água subterrânea oficialmente não aparece, e interessantemente os estados não tem uma política (embora tenham leis) específica de valorização dessa água, porque durante todos os processos e crise e do dia a dia, a segurança hídrica está passando por esses poços e por milhares de usuários privados. Eu acho agora é hora de considerar esse adicional de água das cidades, os adicionais também da área de irrigação. Um outro reflexo, além da ilegalidade dos poços, é o problema de mau uso do recurso hídrico. Vimos que várias pessoas estão retirando água do seu poço individualmente, o que é uma boa solução para a pessoa, mas a soma dessas soluções vai causando grandes interferências, algumas com perda do recurso, problemas de inclusão de salinas, indução de contaminantes, justamente pela falta de controle e participação do estado nesse processo. Temos um excelente recurso, mas que não tem sido utilizado na sua plenitude e da melhor forma possível para que tenha os melhores serviços que esse recurso pode ter. Nós temos ainda um grande recurso, que pode ser utilizado, e que se for bem utilizado, será um dos componentes importantíssimos para a discussão da segurança hídrica, sobretudo em períodos de mudanças climáticas e nos aliviando dos problemas.

WRA – Em relação à grande quantidade de poços perfurados de maneira clandestina, o que isso pode representar de risco aos nossos aquíferos?
RH – Interessantemente o principal aquífero que eles estão extraindo na cidade de Recife (PE) é um aquífero que fica a mais profundidade e essas águas são bastante antigas. Datamos essas águas pela primeira vez e vimos que elas têm de 8 mil a 20 mil anos de idade. A população está tirando água de uma aquífero bastante antigo e que seu bombeamento vai causar dois problemas: quando se retira uma água bastante antiga, está se esgotando um sistema que se renova de maneira bastante lenta, ou seja, aos poucos a cidade de Recife (PE) está perdendo o armazenamento desse grande aquífero. Através de modelação numérica, nós vimos que se o bombeamento do aquífero continuar nos mesmo padrões, nos próximos 40 ou 50 anos é provável que esse aquífero mais profundo se salinize vindo com águas salinas que entrariam pelo fundo do mar e chegaria a atingir esse aquífero. Portanto a grande informação que tiramos de Recife (PE) é que a cidade é extremamente dependente (em 20%) desse aquífero. Temos ainda pela frente, provavelmente 40 ou 50 anos de utilização ainda plena, nos mesmos moldes de hoje. Isso significa que se nas próximas décadas Recife (PE) não melhorar seu sistema de abastecimento público, não dependendo tanto de poços privados, vai existir uma séria consequência em relação à perda desse aquífero por salinização.

WRA – E o Aquífero Guarani?
RH – O Aquífero Guarani é bem menos utilizado (embora o estado de São Paulo utilize ele para o abastecimento público). É um aquífero que apresenta um gigantesco armazenamento (é um dos maiores aquíferos do mundo nesse quesito) e é um recurso ainda pouco utilizado dentro do estado de São Paulo. O número de poços ilegais, sobretudo na parte mais confinada (interior), é muito baixo. O problema de clandestinidade do Guarani acontece na área de afloramento, onde a formação geológica que forma esse aquífero, está exposta e junta à superfície. Na parte mais interior temos um aquífero muito mais controlado nas suas outorgas e utilização. Houve um grande estudo em relação a esse aquífero, financiado pelo Banco Mundial e outras agências multilaterais, com inclusive verbas dos quatro países que compõem o aquífero, e uma das constatações que tivemos do ponto de vista de gestão, é que temos um aquífero muito antigo com águas muito antigas. Recentemente, a Agência de Energia Atômica junto com a UNESP conseguiu fazer uma datação de São José do Rio Preto, e viu que as águas são de mais de 100 mil anos. O que significa isso no ponto de vista prático? Quer dizer que a renovação das águas por processos naturais demora essa ordem de magnitude de tempo. Cem mil anos para ser renovada. Estamos retirando uma água que entrou no aquífero há cem mil anos atrás. E portanto a forma de gerir o aquífero deve ser repensada. O estado de São Paulo, ou mesmo outros estados que tenham o Aquífero Guarani nessa situação, ainda não tiveram uma política de utilização de um recurso que tem limitações (estamos tirando uma água que demora muito para ser renovada). O Guarani é um desafio no sentido de que é um aquífero diferente, que não se renova. Ele é passível de ser utilizado, mas não é sustentável no sentido de que um dia ele acabará. Então o que devemos fazer é planejar o bom uso para que se maximize os benefícios sociais e minimizem os impactos econômicos, sociais e ecológicos.

WRA – Pode estar nas águas subterrâneas uma importante alternativa para aumentarmos a nossa segurança hídrica?
RH – A água subterrânea tem uma característica, através de seus aquíferos/reservatórios, de armazenar uma grande quantidade de água. 97% da água doce líquida do planeta está nos aquíferos. São águas subterrâneas. Qual á a grande importância de um recurso como esse numa situação de longos períodos de estiagem? É como se eu tivesse uma grande poupança. Se você tiver uma boa poupança, você não vai sentir o problema da perda do seu salário. Esse é exatamente o papel do aquífero. O aquífero reserva uma imensa quantidade de água, que deve ser utilizada quando tivermos problemas de estiagem e restrição de água, que afeta rapidamente os reservatórios de água superficial. Começa a estiagem, o secamento de barragens e o secamento de rios, e é onde a sociedade devia se proteger utilizando mais água subterrânea. Quando as chuvas retornarem, o excesso dessa água, inclusive, pode ser recolocada para recarregar o aquífero, para que no próximo período tenha novamente a possibilidade de usar esse reservatório. Uma sociedade que queira ter mais segurança hídrica deve utilizar os dois recursos de forma inteligente: períodos de estiagem, mais água subterrânea; período de chuvas, a água mais barata é a água superficial. O balanço desses dois recursos vai permitir que as cidades sejam mais inteligentes e resilientes aos processos. Essa é uma discussão-chave que deve estar na agenda de segurança hídrica planetária do Fórum de Brasília.